A arquitetura da cura: situações de emergência e recuperação
A arquitetura pode funcionar tanto como cura quanto como bem estar. Seja como um espaço capaz de minimizar a transmissão de doenças, ou simplesmente proporcionando um espaço tranquilo para o consolo, as construções do nosso dia-a-dia moldam diretamente a nossa experiência. Em situações de emergência, a arquitetura opera como um espaço da saúde e abrigo. À medida que os arquitetos continuam a repensar os projetos de habitação e necessidades humanas básicas, eles também estenderam seu foco para o bem-estar mental, físico e espiritual.
A pandemia de COVID-19 nos mostrou mais uma vez a importância da prática profissional da arquitetura em situações de emergência. Por outro lado, esta não é a primeira vez – e tampouco será a última – que abrigos emergenciais passam uma prioridade ou até mesmo uma urgente necessidade em nossa disciplina. Estruturas temporárias são respostas imediatas para situações de crises humanitárias. Entretanto, existe uma enorme variedade de diferentes soluções para cada situação específica: seja na foram de abrigos para refugiados, estruturas efêmeras para desabrigados em casos de catástrofes naturais até crises sanitárias como a que estamos vivendo neste momento. Acontece que, na maioria dos casos, estas arquiteturas passageiras acabam permanecendo, se desdobrando até o ponto de assumirem a forma de soluções definitivas. Com isso em mente, o significado – e a missão social – que estas estruturas carregam consigo, já não mais podem ser subestimadas.
Em seus artigos anterioes a editora Vanessa Quirk afirma que arquitetos e arquitetas tem muito o que aprender com projetos de estruturas temporárias, e que algumas soluções típicas desenvolvidas em situações de emergência poderiam também, ser aplicadas em projetos permanentes. Quirk afirma que, “abrigos temporários têm a urgente necessidade de criar espaços capazes de engajar a comunidade, estruturas concebidas para curar as feriadas ainda expostas, proporcionar suporte e recuperação física e psicológica – seja em casos de violência ou catástrofes.” Desta forma, estas arquiteturas de cura carregam consigo não apenas a obrigação de sanar traumas do passado, mas principalmente de prevenir que situações como esta se repitam no futuro. Em se tratando de projetos de escola em contextos pós-traumáticos, aos quais Quirk se refere em seu artigo publicado em 2013, “uma escola que visa curar as feridas do passado também deve garantir um futuro melhor para seus alunos – um legado pelo qual vale a pena lutar.” Neste sentido, ela aponta três abordagens possíveis: podemos tentar apagar toda e qualquer lembrança da tragédia ou sofrimento, podemos procurar isolar a escola das tragédias que acontecem fora dela, ou podemos focar em construir espaços capazes de curar estas feridas e engajar as comunidades em busca de um futuro mais seguro e consciente.
Abrigos, escolas e espaços de recuperação compartilham uma série de valores, e mais do que isso, compartem também uma enorme variedade de conceitos e soluções espaciais semelhantes. Vanessa Quirk acrescenta, “quando projetamos um abrigo temporário, a segurança e o bem-estar passam a ser a nossa principal preocupação. Ainda assim, estas estruturas devem ser capazes de incorporar não apenas as necessidades das pessoas adultas, mas principalmente, das crianças.” Ao projetar espaços para a cura e para o bem-estar de uma comunidade, é preciso ser consciente de toda esta gama de diferentes necessidades, sobretudo porque estas soluções tendem a permanecer por muito mais tempo do que elas são projetadas para durar.
Em 2016, em um esforço para ajudar a situação dos refugiados em todo o mundo que fogem da guerra e da perseguição, dois jovens arquitetos embarcaram em um projeto destinado a melhorar a saúde mental destas pessoas. O projeto, chamado de “Maidan Tent”, permite que os refugiados se beneficiem do espaço público interno – uma área comum para combater o trauma psicológico induzido pela guerra, perseguição e migração imposta.
Construída em 2010 como centro comunitário, esta biblioteca está localizada em um parque urbano na cidade de Tel Aviv e é um dos principais pontos de encontro da população de migrantes que vive em Israel. É uma estrutura projetada sem paredes ou portas – uma decisão consciente que procura fortalecer a missão do edifício, garantir livre acesso à coleção de 3.500 livros da biblioteca. A ideia de uma biblioteca aberta foi desenvolvida para que nenhuma pessoa tivesse medo de entrar, para ser mais inclusiva e principalmente, para transforma-la em um espaço de socialização, explicaram os arquitetos.
Os alunos da Escola de Arquitetura de Yale, Lucas Boyd e Chad Greenlee, apresentaram uma proposta de igrejas emergentes, sinagogas e mesquitas para aqueles que fogem de conflitos em campos de refugiados. Boyd e Greenlee criaram espaços sagrados mínimos, mas facilmente reconhecíveis e que podem ser facilmente construídos como estruturas “Pop-Up”. Locais de culto emergentes incorporam a importância de focar nas necessidades emocionais dos desabrigados, em vez de um simples refúgio físico.
Outra solução são os chamados Centers for Healthy Living (CHL) ouCentros de vida saudável. Os CHLs são estruturas criadas para atender pessoas que encontram-se em um limbo entre um centro de atenção especial para adultos e um asilo. Adotando uma abordagem holística, estes centros procuram promover o bem-estar das pessoas ao mesmo tempo que, procuram criar um senso de lugar e comunidade. Em um relatório publicado pela Perkins Eastman, a empresa explorou todos os meandros dessa tipologia, identificando oito características ou categorias de bem-estar: emocional, ambiental, intelectual, físico, ocupacional, espiritual, social e financeiro. Seja em abrigos temporários, escolas em contextos pós-traumáticos ou espaços comunitários como bibliotecas e centros de saúde, a definição de bem-estar vai muito além de um simples teto que nos protege da chuva, dos ventos e do sol.
Bem-estar geralmente significa muito mais do que apenas proteção. Sentir-se bem tem uma raíz profunda em questões espaciais que vão muito além da mera arquitetura, a qual deve incluir, sim ou sim, questões relativas ao nosso contexto sócio-cultural. É imperativo que soluções espaciais que procuram dar respostas efetivas à soluções excepcionais e emergenciais, têm de promover ou até construir um sentido de comunidade, comprometendo-se também com o caráter educativo da arquitetura e do espaço, não menos importante – neste caso – que a segurança e a saúde. O impacto do ambiente construído na vida de uma comunidade é inegável e por isso, arquitetos e arquitetas precisam ter em mente, e na ponta do lápis, que se há uma dimensão do espaço que nunca pode ser esquecida na hora de projetar estruturas sejam elas temporárias, semi-permaneces ou perenes: esta dimensão é a sua capacidade de curar as pessoas dos traumas do passado. O bem-estar na arquitetura tem a ver sim com a saúde, mas também está relacionado com comportamentos e fatores sociais e ambientais que podem estar na raíz do problema, os quais, por sua vez, devem ser considerados sempre na hora em que formos projetar nossos edifícios e cidades, pois o ato de projetar, inevitavelmente aponta para o tempo futuro.