Como os biomateriais têm conquistado o mercado e substituído compostos poluentes
Resíduos de cana-de-açúcar se convertem em plástico, folhas de cactos e ramos de cogumelos resultam em alternativas para o couro. Desejos para um mundo mais ecologicamente correto? Melhor: isso já é realidade.
Esse tipo de matéria-prima preparada com base em plantas e substâncias orgânicas (graças a pesquisas de bioquímica e bioengenharia) recebe o nome de biomaterial, termo da medicina já incorporado ao vocabulário do design – em 2019, os organizadores do London Design Festival elegeram essas descobertas como material do ano. “As biotechs, empresas que atuam nessa área, começam a despertar interesse e atrair investimento”, diz Carol Piccin, sócia-fundadora da MateriaLAB, consultoria especializada em orientar companhias e profissionais sobre componentes sustentáveis.
Obra de criadores influenciados pelo conceito de economia circular, as novidades animam. Além de substituírem compostos poluentes, muitas delas reutilizam sobras da agricultura e da indústria alimentícia e, assim, ajudam a resolver o grave problema do lixo.
A Fundação Ellen MacArthur, organização internacional difusora dessa ideia, diz em seu guia de design que manter os materiais dentro da cadeia produtiva pelo maior tempo possível colabora para frear a extração de recursos finitos e promover a regeneração de ecossistemas. “O designer, hoje, deve se preocupar com a procedência e o destino dos ingredientes que usa em seu trabalho. Ele precisa planejar o descarte de suas peças, e como desmontar e reinserir cada parte delas no ciclo de fabricação”, explica a arquiteta Léa Gejer, fundadora da Flock, consultoria para projetos de design e arquitetura circulares, e sócia do site educativo Ideia Circular.
DE VOLTA AO COMEÇO
Nessa lógica, tudo o que pode ser depositado na terra para virar nutriente, contribuir para a recuperação do solo e alimentar diversas formas de vida continua uma ótima opção. “Esta deve ser a escolha preferencial de quem está montando uma casa”, afirma Carol. A categoria inclui madeira, bambu, algodão, linho, casca de coco e fibras como a palha de carnaúba e o capim-dourado. Também entram na lista alguns itens de origem animal, a exemplo do couro de peixe, desde que provenientes de descarte.
Carol ressalta a importância de obter esses insumos por meio de manejo responsável. “Somente uma exploração saudável garante que a natureza continuará a oferecê-los e que eles nunca vão faltar”, lembra. Materiais naturais, porém, não dão conta de atender a todas as demandas de um décor. Nessa hora, considere pesquisar iniciativas que dão um novo significado para o lixo.
Algumas marcas já se estabeleceram nesse segmento em larga escala. É o caso da italiana Aquafil, fabricante do Econyl, um náilon confeccionado com redes de pesca abandonadas no fundo do oceano e carpetes recolhidos de aterros, e já fornecido globalmente. No Brasil, ele é empregado em tapetes da Avanti, da By Kamy, da Punto e Filo e da Santa Mônica. Outras empresas se organizam para trabalhar de maneira local.
Entre elas, a catarinense RatoRói inventou o Byeplastic, lâminas feitas exclusivamente de plásticos de uso único jogados fora, como sacolas e garrafas, resgatados por associações de catadores. “O volume apanhado é separado por cor já na cooperativa. Depois, vai para a fábrica, onde precisa ser higienizado e flocado antes da prensagem. Utilizamos um processo de baixa tecnologia para conter o gasto de energia”, conta a designer Flávia Vanelli, uma das sócias da companhia. No ano passado, a luminária Corrupio Loop, fruto da parceria entre a RatoRói e o designer cearense Érico Gondim, foi finalista da premiação internacional Ro Plastic Prize, promovida pela galerista italiana Rossana Orlandi dentro do programa Guiltless Plastic (plástico sem culpa, em tradução livre).
TECNOLOGIAS ABERTAS
A prática adotada pela RatoRói parece bem simples – e é mesmo. Então, cabe a pergunta: por que não existem outras iniciativas assim para enfrentar o excesso de plástico com mais alcance e popularizar soluções como o Byeplastic? “A cadeia de reciclagem não está bem estruturada para alimentar a produção. Há muita burocracia para fundar uma cooperativa de catadores e muitas fecham por falta de apoio de gestão”, afirma Flávia.
Sem falar na pressão comercial. “No caso específico da RatoRói, optamos por ganhar escala sem abrir mão de propor um design de superfície único para cada projeto. Isso leva tempo”, observa. O designer Érico Gondim complementa: “Em geral, uma empresa que deseja atuar de forma consciente precisa mudar maquinários e operações, encontrar novos fornecedores e incorporar etapas artesanais e semiartesanais. Tudo isso requer prazos que o mercado nem sempre está disposto a esperar”, aponta.
Um modo de agir, segundo o arquiteto Glaucus Cianciardi, professor do Centro Universitário Belas Artes e autor do livro A Casa Ecológica (Ed. Horizonte, 191 págs.), é espalhar conhecimento em vez de produtos. “A saída está nos modelos de inovação aberta, que transferem tecnologia e estimulam a fabricação localmente. Não faz sentido centralizá-la, torná-la dependente de transporte de longa distância para a distribuição, se a ideia é evitar mais emissões de carbono”, ressalta.
LADO A LADO
Nessa seara, o mindset da colaboração responde por algumas das junções de talentos mais interessantes e emocionantes dos últimos tempos. Em Maceió, os designers Marcelo Rosenbaum e Rodrigo Ambrosio e o Instituto A Gente Transforma uniram forças com a comunidade de catadores de sururu do entorno da Lagoa de Mundaú, e especialmente com o artesão Itamácio Santos, para criar o cobogó Mundaú, elemento vazado que incorpora as cascas descartadas do molusco em uma manufatura semiartesanal.
A fabricante de cerâmica Portobello tomou conhecimento da ação nas redes sociais de Rosenbaum, e decidiu encampá-la ao comprar os artigos confeccionados pelo grupo e colocá-los no mercado por meio da Pointer, seu braço democrático. “Com sua expertise, a Portobello envolveu-se diretamente na estruturação da fábrica dos artesãos e no aprimoramento do cobogó, e também auxiliou em outras fases, como comunicação e embalagem”, diz Scheila de Souza Orlandi, responsável pela área de sustentabilidade da corporação. Nascido no programa Maceió Mais Inclusiva Através da Economia Circular, o bloco foi finalista do prêmio Human City Design Award, conferido pelo governo de Seul, e foi o ganhador do Prêmio Casa Vogue Design 2021 na categoria Revestimentos.
Outra química especial aconteceu quando a Etel convidou a designer espanhola Patricia Urquiola para desenhar uma linha de mobiliário. Numa das peças, um carrinho de chá, o granito inicialmente previsto cedeu lugar a uma alternativa composta de resina à base de cana-de-açúcar e cavacos de madeira, resultado de experimentações realizadas na fábrica da marca. “Ela surgiu da inquietação da Patricia por inovar e da minha vontade de valorizar as sobras da marcenaria”, relata Lissa Carmona, diretora da Etel, que contou ainda com a inteligência da Braskem, fornecedora do bioplástico de cana, e da Vallvé, expert em resinas.
Depois de uma série de aperfeiçoamentos ao longo de um ano, a fórmula atingiu 75% de componentes vegetais. “Sei que o móvel só poderá ser consumido por uma parcela muito pequena da população, mas acredito no poder de artistas como Patricia em captar e traduzir clamores que estão na sociedade e inspirar a transformação”, arremata Lissa. A atitude teve o mérito de representar mais um passo no movimento de aproximação entre os universos do design e dos biomateriais, categoria em que se enquadra o bioplástico da Braskem.
Lá fora, esse casamento já rendeu frutos como o Desserto, couro vegano feito de cactos, o Carbon Tile, ladrilho de cimento e carbono capturado da poluição do ar, e o Mylo, tecido com aparência de couro composto de micélio (a parte fibrosa dos cogumelos). Este último, em especial, gera expectativa porque a biotech responsável por ele, a americana Bolt Threads, recebeu aportes de uma parceria inédita entre as grifes de moda e acessórios Adidas, Kering, Lululemon e Stella McCartney. Por ora, o Mylo servirá a calçados, bolsas e vestuário, com lançamento previsto para este ano. Mas tudo conspira para que ele e mais similares logo brotem, deem origem a um portfólio polpudo de escolhas de bem com a natureza e, finalmente, cheguem em peso à nossa casa.