Fortaleza – CE | sexta-feira 7 de março de 2025 / 02:12

As megacidades do futuro também podem se tornar inteligentes?

Cidades estão tão profundamente enraizadas na história da humanidade que dificilmente nos perguntamos por que vivemos nelas ou qual a razão de nos agruparmos em assentamentos urbanos. Ciro Pirondi, arquiteto brasileiro, aponta que vivemos em cidades porque gostamos de ter

Cidades estão tão profundamente enraizadas na história da humanidade que dificilmente nos perguntamos por que vivemos nelas ou qual a razão de nos agruparmos em assentamentos urbanos. Ciro Pirondi, arquiteto brasileiro, aponta que vivemos em cidades porque gostamos de ter alguém para conversar, enquanto Paulo Mendes da Rocha classifica a cidade como “a suprema obra da arquitetura”. A cidade é o mundo que o homem constrói para si próprio. Tratam-se de imensas construções coletivas, palimpsestos, colagens de camadas de histórias, realizações, conquistas e perdas.

Já somos majoritariamente urbanos desde 2007. E a porcentagem deve chegar a 70% de pessoas vivendo em cidades em 2050. Nos próximos anos, megacidades com mais de 10 milhões de habitantes deverão se multiplicar, principalmente na Ásia e na África, muitas delas em países em desenvolvimento. Tal projeção levanta o alerta em relação à sustentabilidade e às mudanças climáticas que as cidades catalisam. E, claro, sobre como possibilitar a qualidade de vida a seus habitantes e de que forma eles poderão prosperar e se desenvolver em contextos que, muitas vezes, não são os ideais. Como esses assentamentos urbanos receberão este aporte da população? Enquanto seus centros antigos demandarão transformações e atualizações, suas periferias exigirão o projeto de novas residências e equipamentos públicos, além de infraestruturas adequadas. Como esse processo pode ajudar os centros urbanos a se tornarem inteligentes, utilizando de forma criativa e eficiente a tecnologia já disponível a favor de seus habitantes?

“A população urbana global deverá crescer 63% entre 2014 e 2050 contra o crescimento populacional total de 32% no mesmo período, o aumento mais rápido ocorrendo entre megacidades com mais de 20 milhões de habitantes e localizadas principalmente em países em desenvolvimento. A tendência cria desafios de sustentabilidade sem precedentes.” Ainda que novas tecnologias, demandas e modos de viver surjam com o tempo, refletir como habitaremos, consumiremos, nos moveremos e como construiremos e reconstruiremos nossas cidades engloba grande parte dos desafios que a humanidade deve enfrentar. Em um mundo cada vez mais preocupado com mudanças climáticas, cada uma dessas tarefas desempenha papéis fundamentais. Segundo o relatório Smart Sustainable Cities: Reconnaissance Study, as cidades são responsáveis por 67% da demanda global de energia e consomem 40% de toda a energia. Os centros urbanos são responsáveis por 70 por cento das emissões globais de gases de efeito estufa, contribuindo para as mudanças climáticas, e vêm sofrendo cada vez mais com desastres naturais. As cidades são palco da maior parte da tensão social provocada pelo aumento da desigualdade e do desemprego, a poluição do ar e da água, congestionamentos, violência e crime. Ao mesmo tempo, oferecem oportunidades de desenvolvimento econômico: é nos centros urbanos que 80% do produto interno bruto mundial é gerado, e seus cidadãos tendem a ganhar mais.

Metrô de Fortaleza - Ramal Parangaba-Mucuripe / Fernandes Arquitetos Associados. Image © Pedro Mascaro

As cidades também evidenciam enormes desigualdades. No mundo, mais de 1 bilhão de moradores vivem hoje nos chamados slums (assentamentos urbanos informais, também conhecidos como favelas), geralmente áreas residenciais urbanas altamente povoadas, conformadas por unidades habitacionais pequenas e precárias, servidas por infraestrutura deteriorada ou deficientes, habitadas principalmente por pessoas pobres. Habitações inseguras e/ou insalubres (por exemplo, falta de aberturas ou telhados com goteiras); com acesso limitado aos serviços básicos (água, banheiros, eletricidade, transporte); superlotadas; casas instáveis e estruturas frágeis ou sem posse de terra segura (ou seja, o direito à terra para morar lá) são a realidade para cerca de 1/6 da população mundial, 80% atribuídos a três regiões: Ásia Oriental e Sudeste (370 milhões), África Subsariana (238 milhões) e Ásia Central e Meridional (227 milhões). E estima-se que 3 bilhões de pessoas necessitarão de moradias adequadas e acessíveis até 2030. Sobretudo em países em desenvolvimento, a habitação é uma questão crítica para grande parte da população. Christophe Lalande, especialista do tema na Un-Habitat, aponta que “a moradia é um grande desafio, porque é a porta de entrada para a inclusão econômica, social e cultural. Deve ser intrinsecamente sustentável, o que significa que deve ser construído de forma a proporcionar estabilidade e condições de vida confiáveis ​​por longo prazo. Esta é uma questão crucial, especialmente para os migrantes, porque o acesso a uma moradia adequada é uma condição prévia para sua integração efetiva.”

É importante que a questão habitacional não seja tratada somente quantitativamente, como muitos governos tendem a fazer. A habitação deve estar integrada à cidade, próxima dos empregos, transportes e atrativos que a cidade oferece. Conjuntos habitacionais isolados na cidade já provaram repetidamente não ser a melhor solução. Além disso, proporcionar edifícios mais saudáveis ​​e confortáveis ​​para uma população global cada vez mais urbana, que passa 80% do tempo em ambientes fechados, é imprescindível, ainda mais se consideramos que, com a pandemia do Covid-19, as habitações tiveram que receber muitas novas funções, como espaço de estudos para as crianças e trabalho para uma parte dos adultos.

Neighborhood·Songyang Three-Temple Cultural Communication Center / Jiakun Architects. Image © Arch-Exist

Construir ou renovar edifícios, com efeitos positivos no bem-estar dos seus ocupantes e um impacto reduzido no meio ambiente ao longo do seu ciclo de vida é um grande desafio. “Isto significa desenvolver soluções que contribuam para o conforto térmico, acústico e visual dos ocupantes e melhorem a qualidade do ar interior, ao mesmo tempo que possam reduzir o consumo de energia dos edifícios. Essas soluções também devem conservar os recursos naturais e diminuir as pegadas de carbono, principalmente como resultado do peso reduzido, do conteúdo de material reciclado e da capacidade de reciclagem no final da vida útil. Por último, não devem representar nenhum risco para a saúde e segurança das equipes de trabalho. Para isso, contamos com a inovação, que deve – é claro – abordar todas essas questões, mas também trazer melhorias significativas no desenvolvimento de nossos processos de compra e fabricação.”

Urban Rehabilitation of Alto de Bomba / OUTROS BAIRROS. Image Cortesia de Ângelo Lopes

Além disso, buscar materiais adequados ao uso e local, além de métodos construtivos mais limpos e sem resíduos, como edifícios modulares, deve ser a regra e não a exceção. Densificar onde é possível, ou seja, em locais que há infraestruturas adequadas para tal, implantando edificações multifuncionais, mesclando residências, comércios, espaços de lazer e trabalho  e, sempre que possível, faixas de renda, pode conformar cidades mais compactas, com menor demanda ao transporte. Também, é hora de repensar muitos conceitos pré-estabelecidos, e todos devem concordar que a pandemia de Covid-19 serviu para isso. Será que precisaremos de escritórios tão grandes, agora que o teletrabalho se mostrou viável? Ou todos os nossos deslocamentos eram mesmo imprescindíveis?

CH House / ODDO architects. Image © Hoang Le photography

É sabido que a construção civil consome enormes quantidades de recursos, tem papel crucial na liberação de carbono (com efeitos já sentidos nas cidades através do efeito estufa), e gera toneladas de resíduos sólidos diariamente. Se pensamos em uma redução das emissões de carbono e de geração de resíduos, é impossível deixar de considerar a indústria da construção civil. Nossa atual economia continua seguindo uma lógica linear de ‘extrair-transformar-descartar’. Uma economia circular pode oferecer oportunidades de repensar a nossa forma de produzir e usar as coisas das quais precisamos, e nos permite explorar novas formas de assegurar a prosperidade em longo prazo. Mas a filosofia circular deve ir para muito além da construção.

Voltando às cidades, podemos nos alongar e falar sobre uma infinidade de questões: a produção de alimento e a distribuição, a gestão da água, o consumo e a geração de energia elétrica, a mobilidade, e a lista continua. Cidades são organismos vorazes, que demandam enormes quantidades de recursos, alimentos, energia, mas produzem riqueza, conhecimento, ao mesmo tempo que geram resíduos e poluição. Essa equação é cruel para os ecossistemas e já começamos a sentir os efeitos das mudanças climáticas.

Superblock of Sant Antoni / Leku Studio. Image © Del Rio Bani

De alguns anos para cá muito tem se falado sobre cidades inteligentes, ou smart cities, que otimizam a infraestrutura e a governança para envolver melhor os cidadãos na gestão dos serviços. Isso quer dizer sensores, sistemas e aplicativos que coletam diversos dados, que podem ser analisados e influenciar na tomada de decisões em assuntos como mobilidade, saúde, gestão de água e energia, moradia, resíduos sólidos, esgoto, entre diversos outros. Os aplicativos com IoT (Internet of Things) baseados em nuvem recebem, analisam e gerenciam dados para ajudar governos locais, empresas e cidadãos a tomar melhores decisões que irão melhorar a qualidade de vida. É a ideia de um urbanismo em rede, onde a combinação de monitoramento e feedback onipresentes possibilitariam cidades mais sustentáveis e produtivas.

“Cidades inteligentes que fazem amplo uso de tecnologias digitais têm sido apontadas como possíveis soluções para as pressões populacionais enfrentadas por muitas cidades em países em desenvolvimento e podem ajudar a atender à crescente demanda por serviços e infraestrutura. No entanto, o alto custo financeiro envolvido na manutenção da infraestrutura, o tamanho substancial das economias informais e vários desafios de governança estão reduzindo o idealismo do governo em relação às cidades inteligentes.” Mas enquanto podemos imaginar cidades bem consolidadas e ricas implantando a tecnologia nos seus cotidianos, esse conceito soa quase como ingenuidade quando temos tantos sem acesso a condições dignas de vida. Isso acende a pergunta: a tecnologia poderia ser um aliado para contribuir de alguma forma a reduzir tais desigualdades e melhorar a qualidade de vida dos habitantes?

Shanghai Minsheng Wharf Waterfront Landscape and Reconnection / Atelier Liu Yuyang Architects. Image © FangFang Tian

Alguns pesquisadores apontam que as iniciativas das Smart Cities poderiam contribuir para superar as limitações do desenvolvimento urbano tradicional, que tende a gerenciar sistemas de infraestrutura urbana separadamente e sem uma integração real entre os atores responsáveis. “Aproveitar o caráter difuso de dados e serviços oferecidos por tecnologias digitais, como computação em nuvem, Internet das Coisas ou dados abertos, permite conectar diferentes partes interessadas da cidade, melhorar o envolvimento do cidadão, oferecer novos e aprimorar serviços existentes e fornecer contexto. O desenvolvimento de Smart City é, no entanto, altamente complexo, desafiador e específico ao contexto. Os desafios incluem diferentes discursos usados ​​por tecnólogos e formuladores de políticas, falta de capacidade para conectar os desafios da sustentabilidade urbana a abordagens viáveis ​​e pressões sobre a coesão social e territorial que exigem soluções de governança exclusivas.” Pesquisadores do tema concordam que tais tecnologias são, de fato, eficientes, quando a população como um todo se envolve e entende sua importância. E este é um desafio ainda maior em locais mais pobres.

House 49 / Atelier Waterside. Image © Chao Zhang

Mas seria a tecnologia a salvadora das nossas cidades, tornando-as sustentáveis, equitativas e, mais importante, agradáveis de morar? Evidentemente, nunca sozinha. Como apontam os pesquisadores Si Ying Tan e Araz Taeihag, o alto custo financeiro envolvido na manutenção da infraestrutura e o tamanho substancial das economias informais nos países em desenvolvimento representam desafios únicos para os ideais de cidades inteligentes que precisam ser resolvidos. Além disso, privilegiar a tecnologia como o núcleo do desenvolvimento da cidade inteligente sem alinhá-la com os valores públicos ou compreender a extensão das necessidades básicas dos cidadãos transformaria as cidades inteligentes em meros ‘elefantes brancos’. O estudo conclui que as cidades inteligentes em países em desenvolvimento só podem ser realizadas quando as reformas socioeconômicas, humanas, jurídicas e regulatórias simultâneas estão incorporadas às trajetórias de desenvolvimento de longo prazo. Condições contextuais – incluindo o desenvolvimento social do estado, política econômica e dotação financeira; a alfabetização tecnológica e a disposição dos cidadãos de participar do desenvolvimento de cidades inteligentes; e fatores culturais únicos – são importantes para o desenvolvimento de cidades inteligentes nos países em desenvolvimento.

O aquecimento global, um aumento crescente de recursos e o acúmulo de resíduo trouxeram à tona a consciência de que é fundamental mudar a forma como projetamos, produzimos e distribuímos produtos e serviços. E, também, como nossas cidades têm funcionado, muitas delas de forma pouco eficiente. Os centros urbanos podem ser encarados como o problema ou parte da solução para o clima. E talvez esta seja uma questão ao redor da qual o mundo todo começa a se unir. A história nos mostra que os centros urbanos podem se reinventar, se refazer, melhorar ou piorar e até ruir. Tratar com seriedade o uso de energia e recursos de forma mais eficiente e, principalmente, proporcionar uma boa qualidade de vida e oportunidades de acesso à cidade é vital. A tecnologia pode adquirir papel crucial, desde que usada para o bem comum.

Fonte: ArchDaily

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