Porcelanato e varanda gourmet: arquitetos refletem sobre modismos na decoração

Em bairros residenciais mais verticalizados, como Pituba, Caminho das Árvores, Boca do Rio e Imbuí, eles estão em todo canto: prédios brancos, novos (com menos de dez anos), altos e com parapeitos de vidro esverdeado. A moda, quase um padrão adotado nos imóveis construídos recentemente, também alcançou casas e chegou até a ser inspiração para muros de edifícios. Com tantas amostras espalhadas pela cidade, surge a pergunta: por quê?

“Eu acho que é uma questão estética mesmo, uma moda talvez lançada por um fabricante. Mas, sendo sincera, eu não gosto. Uma vez, uma cliente me pediu para colocar na casa dela, e eu só pensava: mulher, não faz isso!”, brinca a arquiteta Sâmia Moura, 37 anos, especializada em arquitetura de interiores. Hoje, ainda corremos o risco de o vidro  ser substituído pelo azul, novidade que já chegou a  residências no bairro do Costa Azul. “Não tem bem um porquê, vai da aposta das construtoras, não chega a ter uma funcionalidade”, reforça o arquiteto Daniel Gualberto, 40.

Ainda nas sacadas, especialmente nas dos prédios de luxo, há outro elemento comum: a varanda gourmet. Normalmente, abrigam uma mesa de jantar, geladeira (ou freezer), às vezes um fogão, e sempre uma churrasqueira. Não são parte da cozinha nem da sala, mas uma entidade separada, feita para substituir as áreas de lazer compartilhadas do condomínio. “Para mim, a decoração também caiu nessa onda de gourmetização. Hoje tudo é gourmet, tem até pipoca gourmet!”, diz a designer de interiores Emyle dos Santos, 30, professora no curso de decoração da Universidade Federal da Bahia. “Mas, na verdade, esse espaço de lazer sempre existiu. Quando há um lugarzinho para ter uma churrasqueira, as pessoas colocam. O nome é que é mais novo”, comenta.

Nesse vaivém das modas dos lares, Emyle consegue enxergar a árvore genealógica da varanda gourmet, definida pelo arquiteto Márcio Tanajura, 30, como “um espaço aconchegante para receber amigos”. “Primeiro veio a cozinha americana, que é aberta para a sala. É uma forma de interagir, cozinhar vendo as pessoas. Depois, começou a abrir ainda mais, a sala e a cozinha passaram a estar totalmente integradas, e agora partiu também para a varanda, nesse conceito abertíssimo”, opina Emyle.

Com apartamentos cada vez menores, a professora acredita que as varandas gourmet podem desaparecer. De acordo com Cláudio Cunha, 54, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi-BA), existem dois fatores que explicam a construção de moradias mais enxutas. “Em bairros que já têm uma infraestrutura maior, com escolas, comércio, praças, não há grandes terrenos para construir prédios espaçosos. O segundo fator é a mudança de comportamento das famílias. Hoje, é maior a procura por imóveis menores, com uma manutenção mais fácil, menos trabalhos domésticos. As famílias também passaram a ter menos filhos e há mais jovens morando sozinhos”, explica.

 

Essas transformações, segundo Cunha, levam as construtoras a investirem em condomínios com áreas comuns mais completas, com salões de festa, quadras, piscina, brinquedoteca e academia. “Com menos espaço, as áreas de lazer se tornam parte da casa, uma extensão dela. Lá pelos anos 1980, os apartamentos de dois quartos chegavam a uma média de 90 m². Atualmente, a média é de 60 m²”.

Outra moda que alcançou os espaços de convivência, especialmente as cozinhas, é a dos armários numerosos (quando há espaço) e embutidos. Nesse caso, a funcionalidade é clara: facilita o armazenamento dos utensílios, deixa o ambiente mais organizado e, para muitos, mais bonito. Mas, junto com a cozinha planejada, veio também a mania dos móveis brancos – que, por um tempo, chegou também aos eletrodomésticos. Assim como quase tudo no mundo, a razão também é estética. “As pessoas passaram a querer suas cozinhas brancas. Foi uma moda mesmo, todo mundo pedia a cozinha branca. Agora, os tons mais amadeirados estão ganhando espaço”, reforça Daniel Gualberto.

Muito visto nos apartamentos antigos, construídos lá pelas décadas de 1970 e 1980, o taco foi desprezado nos projetos mais novos. Com a chegada do porcelanato ao mercado, as plaquinhas de madeira só continuaram nos lares de quem não tinha paciência para reformas, dinheiro ou de fato não liga para modismos. “A madeira é um piso nobre, mas tem uma manutenção mais difícil, arranha fácil com móveis e precisa ser sempre cuidado. O porcelanato praticamente não precisa de manutenção”, explica a arquiteta Caroline Lima, 31.

Em contrapartida, atualmente está surgindo uma pequena tendência em manter ou restaurar os pisos de madeira – especialmente o taco, tão comum em Salvador. Para Emyle, a moda de rejeitar a moda do porcelanato vem de uma vontade de resgatar memórias afetivas, retornar às casas dos tempos de criança. “O taco lembra a casa da avó, a infância. Percebo que as pessoas estão com uma consciência histórica muito maior. Com uma manutenção periódica, é possível recuperar o que está lá, não precisa jogar fora, gerar mais lixo. Mas, realmente, não é todo mundo que tem tempo, é uma questão de cada um”, enfatiza.

Na busca por essas lembranças de infância, Emyle consegue identificar elementos que, mesmo que sutis, constituem certa identidade das casas soteropolitanas. A pedra portuguesa e as redes estão no grupo. “Mobiliários que façam uma releitura contemporânea daqueles móveis antigos, cadeiras e mesas feitas com materiais locais, com madeira, palha… São releituras contemporâneas, a ideia não é criar um falso histórico, mas refletir a nossa identidade”.

Outro tipo de piso que passou de amado para uma quase extinção foi o mármore. Mesmo estando entre os mais caros e, ao mesmo tempo, fáceis de conservar, também foi sumariamente substituído pelo porcelanato. “Teve uma época em que os apartamentos de Fortaleza já eram entregues com o mármore. Você não sabe a dor que eu sentia quando um cliente me pedia para tirar tudo, é um piso muito nobre”, lembra Sâmia, natural do Ceará. A razão é simples: o mármore e seus risquinhos característicos é mais difícil de combinar com os móveis e enjoa rápido. “O porcelanato é todo de uma cor só, harmoniza com qualquer coisa. Eu entendo quem prefere tirar o mármore, mas, ainda assim, é uma tristeza”.

Entre os modismos já envelhecidos e que dificilmente vão voltar – mas nunca se sabe – estão os banheiros cobertos por pastilhas em todas as paredes. “Existem umas releituras mais contemporâneas, mas já apareceu uma pessoa que queria fazer como os de antigamente. São peças até difíceis de achar em lojas de construção”, comenta a arquiteta Odile Tosta, 32. Mesmo sabendo que o cliente pode se arrepender depois, caso insista muito, o arquiteto não tem para onde fugir: “Tentamos mostrar outras opções, mas quando a pessoa quer mesmo, respeitamos. É a casa dele, ele precisa estar feliz”.

Casas McDonald’s

Depois de anos de padronizações, tanto de fachadas quanto de espaços internos, a valorização e a busca pela identidade própria dos locais em que os imóveis estão inseridos se tornou uma pauta forte entre os arquitetos e designers. A procura por móveis feitos com produtos da cidade e montados por mão de obra local faz parte dessa tentativa de resgatar a originalidade das moradias.

Só que resgatar o que já foi e ainda tem sido forçosamente globalizado não é uma missão fácil. “Fazendo uma crítica à minha profissão, o que eu percebo é que muitos profissionais se formam e vão atuar no interior, mas, em vez de atentar para o que há de característico lá, planejam o espaço como se estivessem num apartamento em Salvador”, reflete Emyle. “É como o McDonald’s: onde quer que você vá, são todos do mesmo jeitinho, seguem o padrão da marca. As moradias estão seguindo essa linha. Mas, pensando bem, até o McDonald’s já tem aderido à identidade do local. Uma franquia na Champs-Élysées [Paris] ou no Japão não é igual a uma em Salvador”, comenta.

Programas famosos de decoração, como Irmãos à ObraAme-a ou Deixe-a: Vancouver e Reforma Total com Nate e Jeremiah tornam esse sintoma bem evidente: por mais que sejam ambientes planejados por escritórios e profissionais diferentes, a semelhança entre eles é inegável, principalmente nas escolhas dos objetos de decoração, a forma como eles são dispostos e, em especial, as cozinhas. O chamado conceito aberto – aquela integração com a sala de jantar – e os móveis brancos aparecem em muitas plantas. “Eu acho que essa globalização que atingiu o design de interiores está ligada diretamente às redes sociais. Elas também se tornam grande fonte de pesquisa sobre o que está acontecendo ao redor do mundo, sendo também fontes de inspiração”, opina Sâmia Moura.

Para quem tem dinheiro guardado e pode optar por mobiliário de fabricação artesanal, a nova onda é a sustentabilidade. “Saber de onde vêm os materiais, quem produz, se aquela produção está causando algum impacto positivo é algo importante e que está ganhando  espaço. Tenho tido mais essa consciência de consumir cada vez menos, reutilizar mais, evitar excessos”, lembra Sâmia.

Na primeira edição da Casas Conceito em Salvador, mostra de decoração que vai reunir arquitetos, decoradores e paisagistas em uma área de 12 mil m² no Horto Florestal, de 7 de agosto a 13 de setembro, Sâmia, assim como os  outros profissionais entrevistados, promete seguir essa linha. A proposta é que cada um planeje um cômodo diferente, como uma casa na árvore, um refúgio na mata e outros espaços.

“O que me chamou a atenção no ambiente que eu escolhi é a estrutura original da casa, que eu vou restaurar. O piso tem um assoalho de madeira, um outro nível com mármore, o forro também é de madeira. Como tenho essa a ideia de minimizar o impacto ambiental, vou reaproveitar tudo. Não concordo em jogar fora, é muito desperdício dos recursos naturais”, conta Sâmia.

Em meio a essa moda de resgatar, perder e resgatar de novo as nossas individualidades estéticas, a forma de morar é um retrato da sociedade – inclusive esse vaivém de tendências e a construção de ambientes cada vez mais parecidos falam sobre o que somos hoje. “Tudo muda de acordo com a cultura, clima, questões antropológicas, sociológicas, classes sociais”, diz Emyle.

No poema Domus, no livro Oráculos de Maio (Editora Record), a poeta Adélia Prado desenha bem as nossas relações turbulentas, mas também estáveis, com o morar. Em alguns versos, diz: “Com seus olhos estáticos na cumeeira/ a casa olha o homem/ A intervalos/ lhe estremecem os ouvidos/ de paredes sensíveis/ discernentes:/ agora é amor/ agora é injúria”. Mas, seja para quem for, conclui Sâmia, “a nossa casa é sempre o lugar para onde queremos voltar”.

Fonte: Obra 24horas