Arquitetura vernacular no mundo pós-coronavírus
A pandemia de COVID-19 vai deixar uma marca indelével no mundo da estética. Desde a fundação da Sociedade das Nações em 1920, finalmente, a estética internacionalizante da arquitetura – como a conhecemos desde então – pode deixar de ser a via de regra ditada pelos cânones da disciplina. Markus Breitschmid, arquiteto e acadêmico suíço professor da Virginia Tech desde 2004, argumenta em seu artigo “In Defense of the Validity of the ‘Canon’ in Architecture,” que o Cânone na Arquitetura é o principal instrumento responsável por isolar a arquitetura do resto do mundo:
“O ‘Cânone na Arquitetura’ serve para reforçar a autonomia da arquitetura de duas maneiras. Por um lado, estrutura nosso pensamento sobre a arquitetura per se. Em segundo lugar, nos permite contemplar a arquitetura de forma autônoma (‘a arquitetura através da arquitetura’).”
O “Cânone da Arquitetura”, inabalável desde que foi estabelecido, está de fato se afastando cada vez mais do mundo real. Isto se torna ainda mais evidente na atual conjuntura, onde cada um de nós está sendo obrigado a cumprir regras de isolamento e distanciamento social, re-acostumando-se a observar o mundo a partir de um lugar mais sensível, profundamente enraizado na experiência individual ao invés de contemplar o mundo através das lentes da “arquitetura pela própria arquitetura.” Cada um de nós habita um espaço interior que é só seu, um ambiente vernáculo com a sua própria linguagem estética. Neste momento de reclusão, neste movimento de voltar-se para dentro de si, parece que todos estamos redescobrindo nossas próprias referências individuais que nos fazem ser aquilo que nós somos. Depois de mais de um século da “canonização” da arquitetura pela arquitetura, parece que enfim, as coisas estão começando a mudar.
Antes do início da Primeira Guerra Mundial, a arquitetura vernacular estava por toda a parte e ainda era ensinada nas próprias escolas de arquitetura como a The Prairie School of America e a na Escola de Amsterdã na Holanda, enquanto o Revivalismo Gótico dividia espaço com o movimento Arts and Crafts na Inglaterra, este último centrado no artesanato criativo como alternativa à mecanização e à produção em massa. Além disso, logo antes da eclosão da primeira grande guerra, despontava na Europa Central uma nova visão “modernista” da arquitetura.
Com a completa realização da revolução industrial, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, emergia no início do século XX um “novo mundo” internacionalizado, estimulando a gênese de uma nova arquitetura, uma espécie de Esperanto Arquitetônico chamado de International Style, que logo se tornaria cânone. Em seu livro “Para uma Nova Arquitetura”, publicado em 1927, Le Corbusier disse que o “nosso mundo, como um ossuário, está coberto de detritos de épocas mortas”, advogando a favor da erradicação das arcaicas estruturas do passado em benefício da construção de novas cidades do futuro. Depois da Segunda Guerra Mundial, esse primeiro esforço universalizante se desdobrou, ou se transfigurou em um período ou atitude que ficaria marcada para sempre na história da arquitetura: o “modernismo”. Uma linguagem universal era um dos muitos valores ideológicos corporificados por aquela arquitetura que emergiu do pós-guerra. Um valor que não é nem “certo” nem “errado”, mas que visto através das lentes de um Cânone universalizante, profundamente enraizado em preceitos estéticos do século passado, se torna inevitavelmente incompleto, pois omite a diversidade latente de nosso tempo.
Parece que o mundo decidiu esfregar a realidade na nossa cara dizendo: essa idiossincrasia precisa mudar. A maneira como nos relacionamos com o mundo a nossa volta é algo que não pode ser controlado por nenhum cânone, seja ele qual for. Esta perspectiva de mundo, vista desde o interior dos nossos espaços cotidianos, está sendo moldada por essa idiossincrasia.
A seguir, a partir das palavras proferidas e projetos edificados por nove arquitetos americanos, procurarei esclarecer meu ponto de vista.
“A atual condição à qual fomos impelidos com a recente irrupção da pandemia, põe em cheque a supremacia absoluta que uma arquitetura que por mais de um século desconsiderou a história, o meio ambiente e o contexto sócio cultural na qual encontra-se inserida. A prescrição asséptica e plurivalente proposta pelo International Style – o Cânone em questão – acabou transformando a arquitetura em uma simples solução genérica e homogeneizante, estruturas verticais construídas em aço, vidro e concreto, ambientes estéreis e espaços herméticos que obstruem a visão do mundo lá fora, afastando-nos uns dos outros. É imperativo para o futuro da arquitetura uma reconciliação com a história e com o lugar. É preciso renovar nosso compromisso histórico com o legado deixado pelos nossos antepassados, resignificando suas estruturas para reconstruir uma arquitetura que nos devolva o sentido de pertencimento e o respeito pelo significado do lugar.” — George Ranalli
O modernismo na arquitetura, entendido como um estilo, passou a ser visto como uma entidade autônoma transformando-se em seu próprio vernáculo, um círculo vicioso e que se retroalimenta: a arquitetura através da arquitetura. A vulgarização da arquitetura que floresceu a partir da segunda metade do século XXI pode até não ser o esperanto arquitetônico que falamos à pouco, mas é fato que na atual altura do campeonato a carência de outras formas de se pensar e ensinar a arquitetura é impreterível. Isto precisa mudar. A maneira como nos relacionamos com o mundo, e com as outras pessoas, tem uma influencia direta naquilo que construímos e as estruturas que edificamos hoje, por sua vez, têm um impacto significativo na maneira como se faz arquitetura amanhã.
“Originalmente parte de uma fazenda de 300 anos, o terreno de cinco acres localizado em Jamestown consistia em pastagens abertas cercadas por muros de pedra. Alguns dos edifícios originais ainda existem e um deles, um antigo galpão de tratores, foi um forte precedente visual para o novo projeto. O vocabulário dos edifícios antigos e da casa nova são semelhantes e os interiores são uma continuação dos exteriores, espaços limpos e simples.” — Estes Twombly Architects
De acordo com o cânone que regeu a produção arquitetônica no último século, a definição de “vernáculo” assumiu uma conotação quase pejorativa e indiscutivelmente negativa que, segundo o ponto de vista dominante, manifestamente ignora à inovação e se abstém de qualquer originalidade transformando-se em desculpa à mediocridade. Em outras palavras, sob o atual Cânone da Arquitetura, o vernáculo é visto como um escapismo capaz apenas de banalizar a superioridade absoluta do ser humano moderno. Mas esta lógica imperante se refere a uma realidade anterior a explosão do surto de COVID-19. Entretanto, as atuais circunstâncias demandam, e de forma indiscutível, que este ato de hostilidade seja revisto – agora mais do que nunca. Neste momento de reclusão, o lugar comum é onde mora o perigo, deslocar-se é inseguro, a circulação é um risco e a alta densidade, um coquetel perigoso para a nossa saúde.
“O viés eurocentrista, fomentado por um mundo cada vez mais globalizado, que tem sido um ingrediente fundamental para o desenvolvimento da arquitetura norteamericana desde os seus primórdios, ainda se faz presente através de seus inúmeros artifícios. Mas para quem projeta e constrói em um lugar como o Novo México, é simplesmente impossível opor-se a direção dos ventos, desconsiderar o trajeto do sol durante o verão – e a presença da paisagem no espaço construído. Nós temos referências até demais neste país para buscar inspiração em outros lugares que não o chão que a gente pisa.” — Antoine Predock
E como estas especificidades se insinuariam na construção de uma nova arquitetura? É preciso observar atentamente ao nosso redor todas as manhãs, as peculiaridades que se fazem visíveis nas estruturas de outrora, as singularidade de cada canto deste país, das pessoas que aqui habitam e do atual momento que estamos vivendo. Não se trata de assumir uma postura “tradicionalista” ou conservadora, assim como o vernáculo não deve ser visto como um “estilo”. É evidente o significado que os materiais desta terra carregam consigo, a influencia deste lugar na forma como se faz arquitetura, até mesmo nas geometrias de suas formas. Talvez tenha chegado o momento de redescobrirmos tudo isso.
Arquitetos estão sendo impelidos – agora mais do que nunca – a repensar a maneira como nos relacionamos com o mundo, não mais visto apenas como um lugar genérico e desconectado de seu tempo e lugar, mas a partir de um ponto de vista profundamente enraizado na experiência do indivíduo, e na maneira com que as pessoas se conectam com o lugar onde vivem. Uma nova definição das coisas que nos conectam, nos movem e nos inspiram, mudando o foco do universal para o local – suas condições climáticas, geográficas, materiais e históricas.
“Não faz falta saber que dia é hoje, quando nos levantamos com a aurora e vamos nos deitar a medida que a noite vai caindo. Enquanto cortamos a lenha para fazer o fogo nos lembramos para que servem os nossos músculos. Conectar-se com o mundo a nossa volta e com o nosso próprio corpo é um alívio para a mente, cada dia mais sobrecarregada pelos problemas mundanos. Ao passear pela floresta hoje, liberando-me da máscara que nos obrigam a usar nas cidades, começo a refletir sobre o verdadeiro significado de estar vivo, de habitar o mundo.” — Dale Mulfinger
O típico clichê de arquiteto que conhecemos hoje é aquela figura que só se preocupa com seu próprio sucesso e legado. Se só existe uma receita para alcançar o êxito na profissão, não tem como dar errado. Esta reprodução dos cânones da arquitetura não é nada mais do que arquitetura feita para arquitetos – arquitetura através da arquitetura –, uma abordagem que desconsidera o Outro à favor do Eu, uma prática autônoma, isolada, compreendida, criticada e reproduzida em um contexto protegido. O mundo fora deste círculo de autopromoção e estrelismo, oferece uma série de oportunidades encontradas na percepção ao invés da razão. Neste momento, em meio a uma pandemia que nos conduz a olhar para dentro e desde dentro, a experiência da arquitetura está se voltando cada vez mais para a micro escala, para o indivíduo e o contexto local.
Se tentarmos racionalizar a arte, ou separá-la do contexto sócio-cultural que a viu nascer, a arte existe apenas para ser percebida pelos nossos sentidos e despertar emoções. Se formos reduzir a arquitetura à um padrão genérico e universal definido pelo olhar arquetípico do arquiteto, então todo edifício que cumprir com as regras preestabelecidas pode ser considerado boa arquitetura, porque quem a julga é o mesmo que a constrói – uma arquitetura que se abstém do seu contexto, omitindo a importância do usuário. A irrefreável locomotiva do Cânone da Arquitetura pode ter finalmente, alcançado o fim da linha.
Talvez, este período de reclusão que nos foi imposto como medida para combater a disseminação da pandemia, possa funcionar como um catalisador de uma mudança inevitável na disciplina da arquitetura. Neste momento, estamos todos voltados a refletir sobre quem nós somos e de onde viemos, ao invés de apenas idealizarmos quem nós gostaríamos de ser e onde desejaríamos estar. As pessoas estão cada dia mais conscientes daquilo que é realmente essencial para elas, e talvez tenha chegado o momento em que os arquitetos precisam voltar a sua atenção e buscar inspiração nestas idiossincrasias.
O típico clichê de arquiteto que conhecemos hoje é aquela figura que só se preocupa com seu próprio sucesso e legado. Se só existe uma receita para alcançar o êxito na profissão, não tem como dar errado. Esta reprodução dos cânones da arquitetura não é nada mais do que arquitetura feita para arquitetos – arquitetura através da arquitetura –, uma abordagem que desconsidera o Outro à favor do Eu, uma prática autônoma, isolada, compreendida, criticada e reproduzida em um contexto protegido. O mundo fora deste círculo de autopromoção e estrelismo, oferece uma série de oportunidades encontradas na percepção ao invés da razão. Neste momento, em meio a uma pandemia que nos conduz a olhar para dentro e desde dentro, a experiência da arquitetura está se voltando cada vez mais para a micro escala, para o indivíduo e o contexto local.
Se tentarmos racionalizar a arte, ou separá-la do contexto sócio-cultural que a viu nascer, a arte existe apenas para ser percebida pelos nossos sentidos e despertar emoções. Se formos reduzir a arquitetura à um padrão genérico e universal definido pelo olhar arquetípico do arquiteto, então todo edifício que cumprir com as regras preestabelecidas pode ser considerado boa arquitetura, porque quem a julga é o mesmo que a constrói – uma arquitetura que se abstém do seu contexto, omitindo a importância do usuário. A irrefreável locomotiva do Cânone da Arquitetura pode ter finalmente, alcançado o fim da linha.
Talvez, este período de reclusão que nos foi imposto como medida para combater a disseminação da pandemia, possa funcionar como um catalisador de uma mudança inevitável na disciplina da arquitetura. Neste momento, estamos todos voltados a refletir sobre quem nós somos e de onde viemos, ao invés de apenas idealizarmos quem nós gostaríamos de ser e onde desejaríamos estar. As pessoas estão cada dia mais conscientes daquilo que é realmente essencial para elas, e talvez tenha chegado o momento em que os arquitetos precisam voltar a sua atenção e buscar inspiração nestas idiossincrasias.
“As estruturas construídas pelos povos nativos podem nos ensinar a perceber a beleza da luz, a como incorporar materiais e técnicas vernáculas na arquitetura que edificamos hoje. Construída a partir de materiais naturais e sem ferramentas eléctricas, esta casa celebra a figura do artesão e sua requintada habilidade que se faz evidente em cada pequeno detalhe.” — House + House
Desprovidos de nossos modos de ver, ou de preceitos estéticos, qualquer tentativa de definir a beleza das formas se torna um mero capricho. Somente a partir de uma profunda compressão do lugar que ocupamos no mundo e das coisas que nos aproximam do Outro, é que seremos capazes de perceber que a arte é um reflexo da vida, e que a beleza encontra ressonância nas especificidades do ‘nós’.
“A arquitetura desempenha um papel fundamental na construção de pontes entre o presente e o passado. Nada no mundo é capaz de nos aproximar mais à história do que a arquitetura.” — Clay Chapman
Ao longo dos últimos cem anos, a arquitetura se transformou em espetáculo, celebridades projetando para outras famosas personalidades, e o resto, as pessoas comuns, fomos completamente excluídos da festa. Naturalmente, aqueles que estavam à aplaudir os feitos extraordinários dos seus colegas, foram os mesmos que ensinaram as próximas gerações a seguir festejando da mesma maneira. Como modelos pavoneando num desfile de moda, a arquitetura acabou ofuscada pela enxurrada de flashes que ela mesmo provocou. Edifícios extraordinários em suas formas mas insuficientes em seu conteúdo. Tudo isso se faz cada vez mais evidente a medida que passamos mais e mais tempo isolados dentro destas caixas estéreis e desprovidas de qualquer valor material e temporal.
“somos criaturas sociáveis que precisam de espaço
cozinhas e varandas generosas
e não áreas comuns cada vez menores
comprimidas por camadas de privacidade” — Ross Chapin
Em nossos dias de isolamento, todos nós queremos estar bem e felizes consigo mesmo, queremos viver em um lugar bonito e agradável. Que nos dê prazer só pelo fato de estarmos em casa. Em vez de desejar que tudo isso acabe e que o ambiente genérico e asséptico prevaleça, é chegado o momento de perceber e advogar em razão da beleza contida nas pequenas coisas que nos cercam no espaço íntimo e doméstico, e que tanto fazem falta lá fora.
Esta impalpabilidade avassaladora de uma arquitetura produzida segundo o cânone da disciplina, deve dar lugar a uma prática que procura responder as especificidades do indivíduo, baseada em suas experiência, memórias e sensações. Esta mudança de foco pode estar acontecendo naturalmente, permeando os nossos sentidos quando ouvimos o chilrear de um pássaro pela manhã, quando observamos as folhas balançar com o vento lá fora. Arquitetos precisam admitir que a simplicidade da natureza é algo que jamais conseguiremos alcançar, e que suas formas são irrepetíveis e impossíveis de reproduzir. A arquitetura deve procura nos reaproximar a nós mesmos e também ao mundo o qual habitamos, ao invés de buscar forjar um modo de vida extrínseco à quem nos somos e de onde viemos.
“Este é um projeto recente inspirado nas pré-existências de um local construído por volta de 1860. Nossa equipe acompanhou todo o processo de limpeza e restauro da estrutura histórica do forte levado à cabo pela Texas Parks & Wildlife. Nossos arquitetos aprenderam como funciona o método tradicional de limpeza da rocha calcária. Neste sentido, com excessão do calcário existente, todos os materiais utilizados foram obtidos no local; tábuas de carvalho, telhas de madeira e até a estrutura de cedro e cipreste foi encontrada nas colinas próximas à obra.” — Michael Imber
Seres humanos perseguem o ideal de beleza à milênios, o fascínio por formas esteticamente agradáveis é algo que acompanha a história da humanidade desde que o mundo é mundo. Nenhum outro ser vivo parece depender disso para viver, eles apenas vivem. Talvez se formos capazes de desenvolver uma nova abordagem estética, menos inspiradora e mais idiossincrática, poderemos oferecer uma alternativa ao cânone que se tornou seu próprio vernáculo.
“O projeto desta capela nasceu de um questionamento de “porquê” as coisas são como são, ela incorpora a forma de uma estrutura pré-existente de 50 anos e a transforma em um novo espaço ressignificado, elevando simbolicamente a sua cruz sobre os braços da nova arquitetura. A capela foi ampliada e remodelada, mas mesmo assim, segue carregando o legado de suas formas e a sua relação com a paisagem.” — Duo Dickinson