As casas que resistem às catástrofes
Sem eletricidade, ligação à rede de abastecimento de águas, mas com o conforto de uma construção convencional e a grande vantagem de não acumularem contas no fim do mês. Projetadas pela Earthship, começaram por ser pensadas para zonas desertas, mas as vantagens económicas e ambientais fizeram com que rapidamente se adaptasse o conceito a meios urbanos, e há cada vez mais exemplos nas cidades. Os benefícios estendem-se ainda ao custo – em média, menos 30% do que as convencionais e à rapidez na construção: entre cinco a oito meses para modelos tipo T2 ou T3.
Não têm eletricidade. Não têm ligação à rede de abastecimento de águas. E também não são servidas pela rede de saneamento público. São casas autónomas, construídas com material reciclado, que funcionam sozinhas. E não só no meio do deserto, mas também e cada vez mais nas cidades, com algumas adaptações, sobretudo pelo cuidado com as águas residuais. Há até algumas utilizadas para alojamento local. Nas Earthship, faz-se produção biológica de alimentos e não existem despesas ao final do mês. Além disso, estas casas são à prova de sismo e de tsunami. Por isso, salvam vidas.
O conceito Earthship, que começou a ser pensado na década de 70 do século passado pelo arquiteto norte–americano Michael Reynolds, baseia-se essencialmente em dois objetivos: garantir a autonomia e a sustentabilidade das casas e assegurar a segurança dos seus habitantes. Por cá, a Earthship Biotecture Portugal é a associação que dá formação sobre o conceito, que cada vez é mais procurado. E, ao contrário do que acontece no estrangeiro, em Portugal são os mais jovens que querem experimentar uma estadia desligada das redes.
Tudo começou em 2013, quando Mário Roriz foi convidado pelo arquiteto Reynolds para participar numa formação no Novo México, nos Estados Unidos.
Durante quatro meses, o engenheiro civil, habituado a trabalhar “nas construções convencionais”, teve a oportunidade “de ver de perto como funciona” uma casa que é feita com pneus, garrafas de vidro e copos de plástico e que “funciona na perfeição” estando completamente desligada da rede pública. De tal forma que, garante, “se pousarmos uma habitação Earthship no meio do deserto, ela funciona sozinha”. Mas não se pense que existem apenas em meios rurais. Porque, cada vez mais, estas construções estão presentes nas cidades.
Mário Roriz começa por explicar que “a base do conceito Earthship é que a casa seja sustentável apenas com energia solar e eólica, mas, dependendo das necessidades dos utilizadores, pode fazer-se, também, uma ligação à rede elétrica”. Tudo depende “do número de equipamentos que irão ser utilizados”, esclarece. Contudo, se a luz solar e a energia eólica forem suficientes para alimentar a casa, esta “funciona com aquecimento e arrefecimento passivo”, o que significa que, sem recorrer a qualquer aparelho de climatização, é assegurado o conforto térmico. Nas cidades, há uma característica deste tipo de construções que tem muitas vezes de ser adaptada.
O engenheiro, que lembra que “mesmo nas casas convencionais, os painéis solares para aquecimento de águas já são obrigatórios”, assegura que “o ponto mais sensível” nas construções em meios urbanos diz respeito ao “tratamento das águas residuais”. A explicação é simples: “Os nossos resíduos não podem incomodar as pessoas que vivem à nossa volta”. Por isso, o facto de os resíduos serem depositados numa fossa exterior pode, num meio mais urbano, “ser um problema”. Mas tem solução. Porque, mediante a legislação de cada local, são feitas algumas adaptações.
Numa Earthship, a água do banho é encaminhada para “um sistema de células de tratamento”, que fica na “zona verde da casa”, onde além de ser feita a produção biológica de alimentos é filtrada a água. “Passa pelo circuito, de célula em célula, e vai para o reservatório da sanita. Depois, a água é encaminhada para uma fossa no exterior”, explica, reiterando que “esse é o ponto em que, em Portugal, a legislação é mais apertada”. Principalmente se houver, a poucos metros da casa, ligação à rede de saneamento pública. Nesse caso, dependendo do diálogo estabelecido com a Autarquia, pode mesmo ter de ser feita uma ligação à rede pública.
Em Portugal e no Mundo, a Earthship está envolvida em projetos muito diferentes. Desde projetos de alojamento local, a alojamentos de natureza e catástrofe, em que os edifícios são à prova de sismo e de tsunami. “São casas enterradas dos dois lados, para não haver qualquer barreira física”, conta Mário Roriz, adiantando que “em caso de tsunami, por exemplo, a água não derruba a casa”. E os pneus “fazem com que a estrutura se torne menos rígida”. Por isso, “as paredes da casa até podem abanar, mas não há derrocada”, completa. Esta é, aliás, uma afirmação que o engenheiro já pôde comprovar.
“Em 2014, uma casa que construímos nas Filipinas foi posta à prova”, revela, completando que “houve um tsunami, que fez o edifício abanar”. Contudo, não houve derrocada. Nem perda de vidas. “Como a casa é articulada e feita para mexer, não há problemas”, observa.
A capacidade de salvar vidas é, provavelmente, uma das maiores vantagens destas construções, mas não é a única. As casas Earthship custam, em média, menos 30% do que as convencionais. E a construção dos edifícios também é mais rápida. “Entre cinco e oito meses” é quanto demora a construção de um T2/T3″, que é a construção-base”, conclui o engenheiro.
Um projeto de alojamento local feito com o conceito Earthship juntou, na Ilha de Kanawa, na Indonésia, 52 pessoas, que uniram esforços para construir 46 habitações. A convite do Governo da Indonésia, a Earthship deslocou-se, em 2016, àquela ilha, para desenvolver um projeto que juntou, desde o início, formadores e nativos. O primeiro passo foi recolher a enorme quantidade de lixo que se encontrava espalhada pela ilha que, em dois dias, ficou limpa. Depois da recolha dos resíduos, foram selecionados os materiais para a construção das casas. Atualmente, apenas duas estão concluídas. O projeto ainda decorre.
Fica em Taos, cidade do Novo México, nos Estados Unidos, e é um resort que oferece uma experiência de alojamento, no mínimo, diferente. O “Phoenix Earthship” é um espaço requintado que conta com uma estufa de selva, que cria na casa um microclima. Equipado com todas as comodidades, o resort tem, no interior, espaços acolhedores e tranquilos, onde ficam alojadas, durante todo o ano, pessoas de todo o Mundo. Tal como nas casas, no “Phoenix Earthship” há uma zona dedicada à produção de alimentos biológicos. E tudo é movido a energia solar. Contudo, desde televisão ao wi-fi, não faltam as comodidades.
O primeiro projeto Earthship a ser construído em Inglaterra foi um centro comunitário, na cidade de Brighton, na costa sul do país. O objetivo era construir um espaço sustentável que inspirasse a comunidade local a mudar os seus comportamentos, que não eram os mais ecológicos. Durante o projeto, os locais ajudaram na construção do “Earthship Brighton” e receberam formação sobre hábitos de vida sustentáveis. O edifício, destinado a atividades educacionais, é muitas vezes utilizado pela Brighton Permaculture Trust, uma associação que promove um estilo de vida mais sustentável.
Em novembro de 2013, o tufão Haiyan, nas Filipinas, causou uma enorme devastação. No ano seguinte, a Earthship foi para a ilha de Tacloban para levar a cabo o projeto “Windship”, em que as casas, enterradas dos dois lados, são à prova de sismo e de tsunami. Neste tipo de construções, não há barreiras. Por isso, no caso de um tsunami, a água contorna o edifício. O que significa que dificilmente ocorre uma derrocada e, por consequência, a perda de vidas é igualmente minimizada. Estas são as vantagens dos edifícios articulados, construídos com materiais de borracha, como é o caso dos pneus.
Fonte: Obra 24horas