Na Austrália, um arquiteto trabalha com um futuro de incêndios

A destruição de uma das regiões mais antigas e de maior biodiversidade do mundo assustou Weir

Quando criança, Ian Weir costumava colocar fogo no mato. Em sua pequena cidade natal perto de Bremer Bay, na Austrália Ocidental, dezenas de pessoas participavam da abertura de amplas clareiras com o uso de fogo na década de 1960.

Primeiro, grandes tratores limpavam cerca de 120 hectares de árvores e arbustos e empurravam tudo para uma enorme pilha. Uma vez que a vegetação secava, os moradores se alinhavam ao redor do perímetro, mergulhavam pedaços de pau cobertos por um pano em tambores de gasolina e ateavam fogo. Com apenas uma brisa leve, toda a paisagem se incendiava.

“Isso literalmente criava uma nuvem de cogumelo como a da bomba atômica. Uma coisa violenta”, disse Weir.

A destruição de uma das regiões mais antigas e de maior biodiversidade do mundo assustou Weir e ajudou a moldar sua visão de arquiteto profissional do fogo: fazer da natureza sua aliada, não uma inimiga.

A clareira era parte de um esquema de reassentamento de soldados, no qual 133 fazendas foram doadas para veteranos militares brancos, incluindo o pai de Weir. A experiência mostra uma convenção antiga, que ainda reforça os regulamentos, de que para viver na região da Austrália propensa a incêndios você tem de se livrar da vegetação.

Mas, depois do verão de queimadas infernais na Austrália, surgiu um debate sobre como reconstruir nessas áreas de uma forma que preserve a vida humana e a terra. É um dos “paradoxos não resolvidos” da arquitetura do fogo na mata, diz Weir. Para resolvê-lo, ele quer enfatizar o design inovador, não a limpeza de terras.

“A paisagem combinada com a segurança contra o fogo é poderosa o suficiente, com o nível certo de atenção, para criar toda uma nova tipologia da arquitetura, algo que não está no imaginário das pessoas”, afirma Weir, de 56 anos.

Os incêndios deste verão destruíram mais de 20 milhões de hectares, matando pelo menos 34 pessoas e destruindo cerca de seis mil casas e outras estruturas. À medida que as mudanças climáticas levam os incêndios a extremos, a grande maioria das casas em áreas de risco está lamentavelmente despreparada para o próximo inferno.

Para vermos como é a resiliência do fogo, Weir me leva ao seu último projeto no sul da Tasmânia. Passamos por Dunalley, pequena cidade costeira onde incêndios em 2013 destruíram 93 casas e forçaram uma família a se abrigar sob um píer. Lembranças do fogo ainda podem ser vistas nas árvores, que vão se regenerando ao longo das encostas.

“Isso teria de desaparecer”, diz ele, apontando para uma pequena casa azul simples de um andar ao longo da estrada.

Encarapitada em uma encosta tomada por mata rasteira, a Casa Apex Point de Weir é um bastião cristalino com vista para um oceano cinzento. A estrutura de um único andar deve atender a certos pré-requisitos de segurança de incêndio que Weir considera “totalmente ilógicos”.

De modo geral, esses pré-requisitos seguem uma regra de ouro simples: quanto mais terra você limpar, menos resistente o design da construção precisa ser. Mas a limpeza do terreno ao redor de uma casa não vai protegê-la contra as brasas, o principal acionador de incêndios domésticos, que podem vir de até 40 quilômetros de distância, conta Weir.

Ian Weir e Shane Salter no projeto da Apex Point House, Austrália
Ian Weir e Shane Salter no projeto da Apex Point House, Austrália (Alana Holmberg/The New York Times)
Caderno de desenhos de Ian Weir
Caderno de desenhos de Ian Weir (Alana Holmberg/The New York Times)

A limpeza do terreno coloca a construção mais em risco, afirma ele, porque permite que casas convencionais sejam erguidas em áreas propensas ao fogo. Além disso, a limpeza pode causar a erosão do solo, prejudicar a biodiversidade e criar microclimas secos.

A Casa Apex Point segue o princípio do elo mais fraco: apenas uma pequena fenda poderia capturar uma brasa, incendiando toda a casa. A Apex é hermética, com um teto plano e não inflamável, janelas resistentes e revestimento de aço. Excedendo as regulamentações, Weir adicionou uma membrana à prova de fogo sob o revestimento.

“A culpa é sempre da vegetação. O que os designers realmente precisam fazer é defender o papel de adaptar seus projetos. É uma grande mudança de paradigma”, disse Weir.

A arquitetura do fogo é um campo de nicho. Quando Weir era estudante, escreveu uma carta a Glenn Murcutt, um dos principais arquitetos ambientais da Austrália e um dos primeiros a incorporar a resistência ao fogo em projetos de moradias. Murcutt respondeu com uma carta digitada de quatro páginas e a cópia de uma nota dos gratos donos de seu projeto mais famoso, a Casa Simpson-Lee.

Desde o auge de Murcutt no último quarto do século XX, o campo estagnou, com a maioria dos construtores agora seguindo os códigos atuais que Weir considera ilógicos. Com 13 projetos concluídos, ele não é prolífico, mas assumiu com entusiasmo a luta que Murcutt começou anos atrás.

A escolha de Weir começou em meio aos incêndios do Sábado Negro de 2009, que mataram 173 pessoas e destruíram duas mil casas. Ele tinha acabado de terminar seu doutorado em arquitetura e paisagismo e aceitou um cargo de professor na Universidade de Tecnologia de Queensland; essa experiência o expôs aos holofotes nacionais e transformou suas ideias em uma missão.

Como ele cresceu contemplando a destruição em larga escala da terra, a conservação se tornou sua força motriz.

“Venho daquela paisagem, e a vi sendo intimidada. Sou aquele garotinho pensando: ‘Uau, isso é realmente grande.’ Agora, vejo que toda essa coisa de bullying e de colonização continua.”

As opiniões de Weir foram friamente recebidas por muitos do setor. “Tenho inimigos”, diz ele, rindo um pouco desconfortavelmente.

Críticos no campo de segurança contra incêndios dizem que ele busca a publicidade e se sente muito confortável em uma zona em chamas.

A filosofia de Weir de um design mais poderoso e de menos desmatamento da vegetação pode não representar muito risco em incêndios de baixa intensidade, afirmam eles. Mas, em uma seca severa do tipo que está se tornando mais frequente, nada sobreviverá ao fogo. Eles também notam que a abordagem de Weir não fornece uma zona suficientemente segura para os bombeiros.

Os dois lados parecem ter suas razões. Mais vegetação significa mais risco, especialmente em um raio de 36 metros, explicou Phil Gibbons, especialista em manejo de vegetação na Universidade Nacional Australiana. Ele acrescenta, no entanto, que também há maneiras de dispor os arbustos para reduzir o risco e manter o habitat.

A limpeza excessiva é “como matar a galinha dos ovos de ouro. Temos de aprender a viver melhor nesses ambientes”, diz Gibbons.

“Seria justo dizer que nossas políticas existentes enfatizam demais o lado da limpeza da vegetação na argumentação”, afirma Justin Leonard, líder de pesquisa sobre incêndios florestais no CSIRO, a agência nacional de ciência da Austrália. O pensamento de Weir reflete um “debate filosófico maior entre as comunidades de pesquisa”, diz ele, acrescentando que a solução é o “equilíbrio”.

Weir também está tentando superar outra barreira ao cortar o custo de suas casas. A Casa Apex Point, por US$ 515 mil, está além das posses de muitas pessoas. Então, ele está promovendo a Casa Karri Fire, que projetou com sua esposa, Kylie Feher, para um bombeiro profissional, e que custa US$ 300 mil.

Caminhando pela vegetação ao redor da Apex, Weir diz que é seu melhor trabalho até agora, o mais perto que chegou de “encontrar sua voz”. Mas, quando se trata da integração dos arbustos, ele quer ainda mais.

“A arquitetura faz algo que nada mais pode fazer: conectar as pessoas ao local. Mas, para chegar lá, você tem de tentar fazer algo realmente extremo”, resume ele.

Fonte: exame.abril.com.br