Cientistas desenvolvem materiais a partir de restos da construção civil
Com ajuda da impressão 3D, os especialistas alcançaram versões resistentes e, ao mesmo tempo, menos nocivas à natureza
Nos últimos anos, os danos ambientais gerados pela produção e pelo acúmulo de materiais criados pelo homem, como o plástico, têm sido um tema cada vez mais discutido. Cientistas procuram alternativas para substituir esses elementos prejudiciais, porém a poluição desencadeada por um deles, o concreto, ainda é um problema sem soluções viáveis disponíveis. Para tornar esse material de construção menos poluente, pesquisadores investiram numa produção alternativa, com a ajuda da impressão 3D e de resíduos descartados em obras. Com os novos métodos, eles obtiveram versões mais resistentes e menos nocivas à natureza desse elemento essencial à construção civil.
O concreto é o produto feito pelo homem mais consumido na Terra. A cada ano, cerca de três toneladas desse material de construção são usadas por pessoa. Ele é feito de água, cimento e areia, que “dão liga” à sua forma e garantem uma alta resistência. Essa mistura é simples, porém gera grandes prejuízos ao meio ambiente.
“Sozinha, a indústria de concreto é responsável por cerca de 8% das emissões mundiais de dióxido de carbono, e a sua produção consome 10% da água industrial do globo. Além disso, a quantidade desse recurso produzida a cada dois anos é superior ao montante de plástico fabricado nos últimos 60 anos”, explicou Pang Sze Dai, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade Nacional de Cingapura (NUS, na sigla em inglês).
O pesquisador explica que Cingapura está passando por um ritmo acelerado de desenvolvimento urbano, o que requer o uso de grandes quantidades de concreto, criando, assim, uma enorme demanda por água e areia — recursos que faltam à cidade-estado. Para resolver essa limitação, Dai e sua equipe decidiram usar uma quantidade bem menor de areia na mistura, substituindo o material por uma argila marinha comum, obtida em escavações feitas em portos e que compõe a maior parte dos resíduos descartados durante essas construções.
Os cientistas recolheram a matéria-prima em canteiros de obras do país. Em seguida, aqueceram o material a 700°C para “ativar” a argila, o que aumentou sua capacidade de ligação com os outros elementos da mistura do concreto. A argila modificada substituiu até metade da areia fina utilizada na “receita original”. Os resultados foram positivos: os pesquisadores obtiveram um tipo de concreto de ultra-alto desempenho, incrivelmente forte, que gera mais economia, pois pode ser usado em quantidades menores sem gerar complicações.
Consumo de energia
Flávio de Andrade Silva, professor do Departamento de engenharia civil e ambiental, do Centro Técnico Científico (CTC) da PUC-Rio, destacou que a pesquisa internacional tem um aspecto sustentável muito importante, além de gerar uma maior segurança no uso do produto. “O trabalho propõe a substituição parcial do pó de quartzo (areia) por essa argila marinha. O primeiro, além de caro, é um material cancerígeno”, frisou. “Porém vale ressaltar que, antes da sua utilização, o resíduo foi seco, moído e queimado a 700 °C. Dessa forma, existe um certo consumo de energia em todo o processo”, ressalvou.
O professor assinalou que o concreto de ultra-alto desempenho é utilizado em construções mais complexas. “Esse tipo de material apresenta uma resistência à compressão (impacto) extremamente elevada e alta durabilidade. Normalmente, ele é utilizado para a recuperação e o reforço estrutural de pontes. A eficiência desse novo material desenvolvido em Cingapura parece ser a mesma apresentada pelo concreto de ultra-alto desempenho tradicional”, detalhou.
Além do uso de argila residual, o grupo de pesquisa da NUS avalia atualmente outros materiais residuais para substituir a areia usada na produção do concreto tradicional. “Pretendemos avaliar com cuidado o uso da areia e da água do mar. Acreditamos que esses recursos podem se encaixar muito bem nessa proposta, caso passem por algumas modificações químicas”, adiantou Dai.
Flávio Silva assinalou que, durante a busca por um concreto mais ecologicamente correto, uma série de elementos podem ser avaliados. “O uso de agregados diversos, presentes em descartes da construção e demolição, a utilização de rejeitos de minério de ferro e resíduos agrícolas são alguns exemplos”, elencou.
Para o professor da PUC-Rio, mais estudos devem surgir nos próximos anos com o objetivo de transformar a área de construção menos agressiva ao meio ambiente, o que ele considera uma demanda urgente. “Muitos trabalhos têm utilizado materiais menos agressivos e facilmente encontrados na natureza, como as fibras naturais, para serem usados nessa área, como o bambu”, disse, acrescentando: “O Departamento de engenharia civil e ambiental da PUC-Rio é referência mundial no uso e desenvolvimento de novos materiais e tecnologias sustentáveis para a construção civil.”
Palavra de especialista
Setor em crescimento
“Essa área de pesquisa, nós chamamos de novos materiais. São recursos aprimorados que apresentam mais resistência e têm uma pegada de carbono menor. A busca por produtos mais eficazes para serem usados na construção civil é algo arcaico até. Um exemplo disso é o óleo de baleia, que foi utilizado como impermeabilizante em muitos prédios antigos do estado da Bahia, assim que a cidade foi construída. Hoje, repetimos isso, mas com as tecnologias que estão disponíveis, como a impressão 3D, e priorizando a proteção ao meio ambiente. A única limitação que vejo nesse tipo de trabalho é que os cientistas usam materiais obtidos em suas regiões. Precisamos ver se o resultado seria o mesmo em outros países, pode ser que isso não ocorra pela diferente composição de cada argila. Porém, acredito que trabalhos semelhantes surgirão para esclarecer essas questões. Esse tipo de recurso é algo que as empresas do setor têm buscado cada vez mais, entretanto, faltam especialistas que respondam a essas demandas. É uma lacuna do mercado a ser preenchida.”
Paulo Miyagi, membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e professor de Engenharia Mecatrônica da Universidade de São Paulo (USP)
Do quintal para a obra
Assim como os cientistas de Cingapura, pesquisadores americanos trabalham em um novo tipo de concreto menos agressivo ao planeta. Para essa tarefa, eles contaram com a ajuda da impressão 3D. “O impacto ambiental da indústria da construção é uma questão de preocupação crescente”, justificou Sarbajit Banerjee, pesquisador da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e principal autor do estudo científico, que foi apresentado no último Encontro Sociedade Americana de Química (ACS, em inglês).
Como primeiro passo da pesquisa, os cientistas optaram pelo uso de resíduos do solo como matéria-prima do novo produto. “Historicamente, os humanos costumavam construir com resíduos de origem local, como o adubo, mas isso mudou com o passar do tempo”, contou Aayushi Bajpayee, coautora do estudo e estudante da Universidade do Texas. “Nosso objetivo era voltar no passado e encontrar uma maneira de adaptar os materiais presentes em nossos quintais, usando-os como um substituto potencial ao concreto”, acrescentou.
No estudo, a equipe americana também recorreu a um tipo de argila como base para o novo concreto. Como primeiro passo, os especialistas coletaram amostras de solo do quintal de um colega e foram adaptando o material com um aditivo ecologicamente correto, uma espécie de cola, para que ele fosse facilmente moldado por meio da impressora 3D. “Com essa cola, nós fechamos o zíper do produto, evitando que ele absorvesse água e se expandisse. Isso poderia comprometer a impressão”, detalhou Bajpayee.
O uso da argila modificada como “papel” para as impressões deu certo, os cientistas construíram pequenas estruturas que foram montadas na forma de cubos (5cm em cada lado). O produto foi usado para criar pequenos vasos durante os primeiros testes, com resultados animadores. Os especialistas avaliaram a resistência e viram que o novo concreto é capaz de suportar o dobro do seu peso.
Como próximo passo, a equipe de pesquisa pretende testar o material para ter certeza de que as estruturas impressas em 3D são benéficas ao meio ambiente. “Uma vantagem de usar o solo local na construção é que os materiais não precisariam ser fabricados e transportados para o canteiro de obras, reduzindo custos e danos ambientais. Poderemos construir esse novo concreto no local onde ele será usado, é uma inovação que trará muita praticidade”, afirmou Banerjee.
Os pesquisadores pensam grande e esperam que, futuramente, o material possa ser usado até fora do planeta, na construção de casas na Lua ou em Marte. “É algo que desejamos avaliar no futuro. Assim que tivermos uma ideia melhor da química, funcionalidade e viabilidade de construção com solos locais, partiremos para essa possibilidade. É algo com que sonhamos e que nos deixa empolgados”, complementou o cientista. (VS)